Logo de cara, um parêntese: não se trata aqui de colocar vidas humanas na balança, tampouco de comparar a morte de uma pessoa com a de 71, nem sequer discutir talentos individuais. Não estou interessado em medir indivíduos, mas em entender a comoção que tais fatos causaram —e a comoção, que se saiba, não pertence ao reino do racional. Quero falar sobre sociedades e suas reações, não sobre pessoas.
Dito isso, foi difícil assistir ao velório das vítimas da tragédia da Chapecoense e não lembrar de outro cortejo fúnebre, já 22 anos distante, mas que grudou na memória de gerações.
Apesar de duas perdas esportivas de brasileiros, há poucas simetrias aparentes. Ayrton Senna já era tricampeão, uma celebridade no mundo inteiro, no auge da carreira. O time catarinense, por sua vez, saía de um rincão do Brasil para jogar sua primeira decisão internacional. Senna morreu no exercício de sua profissão; a Chapecoense, num desastre aéreo.
Nas duas vezes, o luto se abateu sobre um país com longa tradição em cortejos fúnebres, mas principalmente de políticos (João Pessoa, Tancredo Neves) e artistas (Elis Regina). No esporte, o Brasil se acostumou a ir pra rua celebrar títulos, não seus mortos. O Brasil pentacampeão, ou do trio Fittipaldi-Piquet-Senna, é construído por antítese —é o bastião da autoestima daquele país de elite corrupta, pouco relevante e periférico que acredita ser.
Talvez por isso, nas duas ocasiões, o Brasil tenha sido pego de surpresa.
Na biografia “Ayrton – O Herói Revelado”, o jornalista Ernesto Rodrigues chama a atenção para a cobertura grandiosa que o funeral de Senna recebeu, comparável ao de chefes de Estado.
Segundo o livro, cortejo e velório tiveram “mais de cinco horas ininterruptas de transmissão, sem um ‘break’ sequer para comerciais ou chamadas da programação” na Globo, distinção também reservada à Chape no último sábado (3).
Rodrigues diz que Redações de jornais do mundo só se deram conta da importância do evento conforme chegavam as fotos das ruas paulistanas, mostrando dezenas de milhares de fãs.
A morte de Senna foi um evento global que surpreendeu o mundo por sua repercussão no Brasil. Já o acidente com a Chapecoense foi um evento local que surpreendeu o Brasil por sua repercussão no mundo. O acidente em Cerro Gordo suscitou manifestações de solidariedade em toda a Medellín, mas também em praticamente todos os jogos de futebol na Europa, em partidas da NBA e até uma homenagem do Guns ‘N Roses.
JORNALISTAS
Rodrigo França, autor de um livro sobre a relação entre Senna e a mídia, também lembra que, nos dois eventos, os jornalistas envolvidos foram mais do que meras testemunhas. Em 1994, a imprensa foi uma ponte entre a família e as autoridades europeias e aéreas para transportar o corpo do piloto (e, em alguns casos, amigo) ao Brasil. Na Colômbia, duas dezenas de jornalistas também morreram, e os profissionais que fizeram a cobertura foram obrigados a contornar seu próprio luto.
No caso da Globo, o choro de Galvão Bueno, ao narrar o cortejo da Chapecoense, ecoou o choro de William Bonner, ao narrar o de Senna.
DAVI E GOLIAS
Em que pese estarem em universos diferentes, ao menos um ponto pode unir as trajetórias de Senna e da Chapecoense: a sensação de estarem lutando contra um adversário maior, de quebrarem a ordem estabelecida.
Senna era o maior campeão da F-1 em atividade à época e também o mais improvável. “Lá estava um cara do Brasil, [país] que tem uma indústria automotiva subdesenvolvida, que podia competir e vencer todo o mundo industrializado”, disse o empresário do piloto, Julian Jakobi, ao biógrafo inglês Tom Rubython.
Senna foi o campeão que morreu vencendo em nome de um país que se sentia apequenado pela crise política, a hiperinflação, o jejum de títulos no futebol. Já a Chapecoense foi o time pequeno que morreu ao ousar dar passos de gigante.
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