Era uma manhã fria de abril em Interlagos, em 2003. Naquele ano, algumas poucas equipes, em geral menores, aceitaram trocar alguns testes particulares por uma sessão extra de treinos nas primeiras horas de sexta-feira em cada GP. Por isso, deve ter sido uma Minardi ou uma Jaguar o primeiro carro de Fórmula 1 que ouvi na vida.
O barulho tinha uma nitidez inimaginável —era como se fosse possível pegá-lo no ar com a mão. Enquanto passavam os primeiros aventureiros do outro lado da pista, na reta Oposta, já mal conseguíamos conversar com alguém do nosso lado no setor A, do outro lado do autódromo.
Quem já ouviu o som daqueles motores V10 alguma vez na vida, ou mesmo dos V8, a partir de 2006, deve ter uma recordação semelhante: aquele berro que arrepiava os pelos dos braços, a sensação de que estávamos vendo a máquinas de um outro mundo.
Já em 2013, do mesmo setor A de Interlagos, assisti à última corrida da F-1 até a data com os motores aspirados. No ano seguinte, os motores turbocomprimidos e híbridos deixavam um rastro de silêncio em comparação com seus antecessores. Alguém comentava das arquibancadas, em tom de piada: “Para de falar no celular, estou tentando ouvir a Fórmula 1!”.
O barulho nada tem a ver com o desempenho —aliás, em termos técnicos, o som é contraproducente: a energia dispersada em forma de acústica não está sendo empregada para empurrar o carro. Motores a combustão são muito menos eficientes que os elétricos, em relação à energia que produzem.
Mas nada disso vale de argumento para quem está na arquibancada. O berro dos bólidos aspirados exercia um apelo pertencente ao campo da estética e da psicologia, não da razão.
O automobilismo é um efeito colateral das sociedades industrializadas, que trouxeram ao dia a dia das pessoas mais máquinas, mais bens de consumo e mais barulho. Uma cidade do início do século 19 era muito mais silenciosa do que as atuais. Hoje temos que lidar com o som incessante de carros, ônibus, motos e de máquinas estacionárias ao nosso redor, de dia e de noite.
O esporte a motor é uma competição entre máquinas, mas também uma elaboração dessa cacofonia infernal. O ronco de seus motores está para o barulho cotidiano como um poema está para um despacho ou uma carta comercial.
Não à toa, o automobilismo é contemporâneo de experiências radicais da música de concerto que se distanciaram ou contornaram a noção de belo e agradável: Penderecki, Stockhausen, John Cage e outros compositores do século 20 se inclinaram à incorporação do ruído na música.
Hoje, a pressão por motores mais eficientes e menos barulhentos pode agradar aos vizinhos dos autódromos e à indústria automobilística, persuadida a seguir nessa direção, mas enquanto vivermos num mundo ruidoso, a F-1 perde um pouco de sua mágica.