O automobilismo é um esporte cruel, perigoso e injusto, mas também tem seus defeitos

Por Daniel Médici
Kazuki Nakajima recebe ajuda para voltar aos boxes a pé depois do abandono,  minutos antes do fim da prova (Jean-Sebastién Evrard/AFP)
Kazuki Nakajima recebe ajuda para voltar aos boxes a pé depois do abandono, minutos antes do fim da prova (Jean-Sebastién Evrard/AFP)

Poucas vezes foi possível perceber tão bem a face cruel do automobilismo quanto na última volta das 24 Horas de Le Mans, no domingo (18). A Toyota, azarona na corrida de endurance mais importante do ano, acabou fazendo uma prova estarrecedora, mantendo-se na liderança por voltas a fio. Até seis minutos antes de o cronômetro zerar.

Foi quando Kazuki Nakajima viu o carro que compartilhava com Anthony Davidson e Sebastién Buemi perder velocidade. Parou no meio da pista. Quando finalmente voltou a funcionar, não conseguiu receber a bandeira quadriculada no tempo regulamentar, e não foi classificada —a Porsche levou a vitória com Neel Jani, Romain Dumas e Marc Lieb.

Os contornos trágicos são reforçados pelo fato de a marca nunca ter conseguido uma vitória na prova, apesar de competir consecutivamente desde 2012 e investir pesado na vitória.

A Toyota havia iniciado um programa de endurance no final dos anos 1990, culminando em 1999. Naquele ano, os três bólidos japoneses inscritos pareciam imbatíveis, mas caíram, um após o outro, devido a estouros dos pneus. A poucas horas do final, Ukyo Katayama estava a bordo do único Toyota GT-One remanescente na prova, descontando rapidamente a diferença de quase uma volta da líder BMW, mas foi traído novamente pelos compostos. Teve de se contentar com o segundo posto.

No ano seguinte, a empresa decidiu descontinuar seu programa nos protótipos para colocar de pé sua equipe de Fórmula 1. Que jamais venceu um GP até fechar as portas, em 2009.

O choro nos boxes da equipe em Le Mans repercutiram até nos vencedores, que aplaudiram os rivais.

Pilotos da Porsche comemoram vitória nas 24 Horas (Kamil Zihnioglu/Associated Press)
Pilotos da Porsche comemoram vitória nas 24 Horas (Kamil Zihnioglu/Associated Press)

Todos os esportes, penso, têm como componente alguma sensação difusa de injustiça. No futebol, por exemplo, não é incomum um time perder jogando melhor. Às vezes, o gol simplesmente não acontece.

No automobilismo não é diferente, mas a impressão de injustiça é potencializada porque mesmo o melhor piloto, num carro pouco competitivo, dificilmente vai vencer. É o carro, e não o talento de quem o guia, o principal fator a definir o resultado.

Mas não é assim que funciona a vida? Nosso sucesso não está condicionado ao lugar em que nascemos, à educação que recebemos, a dezenas de circunstâncias estabelecidas antes mesmo que possamos ser responsáveis por nossas escolhas? O automobilismo é perigoso, assim como viver pode ser perigoso. É essa capacidade de refletir questões de fundo da própria experiência humana que confere força e popularidade ao esporte a motor. A Toyota que o diga.