A Fórmula 1 tem um grande passado pela frente

Por Daniel Médici
Sebastian Vettel durante os testes pré-temporada com a Ferrari, em Montmeló; pintura alude aos carros dos anos 70 (Albert Gea/Reuters)
Sebastian Vettel durante os testes pré-temporada com a Ferrari, em Montmeló; pintura alude aos carros dos anos 70 (Albert Gea/Reuters)

A Ferrari apresentou seu carro para a temporada de 2016 com uma notável mudança estética: a proteção do cockpit e o santantônio todos pintados de branco, roubando espaço do tradicional vermelho característico da escuderia. Mudança notável, mas não inédita: a alteração faz referência ao esquema de cores utilizado pela equipe de Maranello nos anos 1970.

Ícones pop por si próprios, aqueles carros retornaram recentemente à dianteira da memória coletiva com o filme “Rush” (2013), inspirado nas disputas de pista entre Niki Lauda e James Hunt.

Não é a primeira vez nesta década que aparece um carro no grid da F-1 fazendo referência ao passado. Quatro anos atrás, duas equipes se estapearam pelo direito de usar o nome da Lotus, que havia fechado as portas em 1994: uma delas usava o verde e amarelo dos carros ingleses dos anos 60, e a outra, o preto e dourado imortalizado pelos bólidos de Colin Chapman nas décadas de 70 e 80.

Por todos os lados, seja na carenagem dos monopostos ou na tela do cinema (além de “Rush”, o documentário “Senna” também voltou os olhos da comunidade automobilística para o passado), a Fórmula 1 sofre a pressão de ser comparada constantemente àquilo que ela já foi um dia.

O problema é que, nessa corrida, a F-1 do presente já se tornou retardatária. Os índices de audiência caem ano após ano no mundo inteiro à medida em que as provas deixam de ser transmitidas na TV aberta, e a categoria deixa de atrair a atenção de boa parte de uma nova geração.

A principal categoria do automobilismo mundial passa por uma crise sem precedentes. Apesar de alterações no regulamento visando o aumento de ultrapassagens (e é importante ressaltar que brigas boas não raro acontecem no meio do pelotão), os pódios das corridas têm sido, em geral, bastante previsíveis nos últimos cinco anos —seja com o domínio da Red Bull, até 2013, seja com a Mercedes, de 2014 para cá.

(O “em geral” está aí por causa da primeira metade da temporada de 2012, extremamente atípica, com sete vencedores diferentes em sete corridas.)

Para piorar, disputas nos bastidores têm ganhado mais atenção do que aquelas que ocorrem na pista. Para citar uma delas: as desavenças entre Red Bull e Renault, no fim do ano passado, que ameaçaram tirar os carros austríacos da temporada de 2016 por falta de um fornecedor de motores (ou “unidades de potência”, no jargão da categoria) substituto.

Outra equipe, a Lotus, também quase desfalcou o grid, por falta de recursos financeiros —a Renault interveio e recomprou o time. Outros competidores, como a Force India, também passam dificuldades para colocar as contas em dia.

Mas engana-se quem acha que a F-1 do passado não esteve imersa em negociatas duvidosas e maracutaias. Muito pelo contrário: as jogadas de bastidores são quase tão antigas quanto a própria categoria. O mundial já correu com carros de Fórmula 2 por falta de inscritos, já alterou regulamentos por pressão de uma única equipe, já quase rachou um sem-número de vezes e talvez não tenha passado uma única temporada sem equipes trocando acusações de ilegalidades no carro alheio.

O caso é que, enquanto mais da metade das equipes boicotava o GP de San Marino de 1982, lá estavam Gilles Villeneuve e Didier Pironi disputando palmo a palmo a vitória até a última curva. Enquanto a McLaren passeava com seus carros anos-luz à frente da concorrência, Ayrton Senna e Alain Prost construíam uma das rivalidades mais emblemáticas da história do esporte. Ao mesmo tempo em que as Lotus de Jim Clark e Jochen Rindt dominavam as pistas, elas também ofereciam o maior risco de morte aos seus ocupantes. Em suma, o torcedor nunca estava desprovido de um espetáculo dentro da pista.

Para cada crise enfrentada fora da pista, a F-1 criava um Stewart, um Piquet, um Keke  Rosberg ou um Schumacher. Hoje, ela pode criar talentos, como Hamilton, Vettel ou Alonso, mas parece ter perdido a capacidade de forjar heróis.

A F-1 pode e deve reverenciar seu próprio passado, mas, se não redescobrir a alquimia que cativou gerações de fãs pelo mundo, está condenada a virar um reduto de saudosistas. E não é uma demão de tinta branca que vai resolver o problema.